domingo, 8 de abril de 2012

Metalinguagem



            – Próximo. – anunciou a secretária.

Mediu-me dos pés à cabeça e indagou, lendo a ficha com certa dificuldade:
 – O senhor é o senhor Esteban...Cunha...Machado?
Fiz que sim com a cabeça e adentrei ao consultório. Lugar simples, nada das frescuras que estou acostumado a ver nos outros consultórios. Uma pintura tosca na parede frontal, com alguns rabiscos pintados em cores primárias. “Quais são mesmo as cores primárias?”, me ocorreu. Fui surpreendido pela voz rouca do Dr. Mendonça:
            – Gostou de alguma coisa? Posso indicar a minha decoradora. – riu – É a minha esposa. Margareth nasceu com uma veia artística muita aguçada. O senhor é o senhor Esteban, não?
            Mais uma vez deixei que minha cabeça respondesse por mim. Era um homem magro, aparentava uns 55 anos. Tinha cabelos grisalhos, olhos azuis e aspecto padecido. Reparei que ele usava tênis All Star, calça jeans e camisa de banda.
            – É Pink Floyd. – disse-me num tom amistoso – Ideal para expandir as ideias. – fez um sinal que remeteu ao uso de maconha. Ri, meio sem vontade. – Então, o que o traz aqui, senhor Esteban?
            – Eu... Eu...
– Sente-se, por favor. – sugeriu com a cara esgarçada.
– Me disseram que o senhor é o melhor psicólogo da cidade.
            – Não gosto de falsa modéstia. Sou um dos melhores, mas não o melhor. Aprendi bastante coisa na faculdade, e ainda mais trabalhando aqui. Faz 18 anos que tenho esse consultório, sabia? 18 anos no mesmo lugar. É bastante tempo, o senhor não acha?
            Respondi que sim. Ele deu continuidade ao seu discurso:
            – 18 anos... Não são meses, tampouco dias. São 18 anos. Só essa secretária que é meio tantã. – disse ele com sarcasmo – O senhor não achou ela meio lentinha? Pode falar. Todos acham. – riu.
            Balancei a cabeça afirmativamente e sorri. Até ia arriscar alguma piada acerca da destreinada secretária, mas ele logo se adiantou:
            – Ela está comigo há duas semanas. Já estou procurando outra pessoa para substituí-la. Ela é muito burrinha, a coitada. Ai, ai... E aí, vai me contar o que o trouxe aqui, ou vou ter que falar durante... – olhou no relógio – os 54 minutos que lhe restam? A minha hora não é barata, senhor Esteban.
            – Não, não é.
            – Então o que o trouxe aqui?
            – É que eu tive um sonho...
            – Que tipo de sonho?
            – É que... Não fico à vontade de falar com um...
            – Estranho? Pode ficar sossegado. Sei que tenho esse jeito descontraído, mas sou 100% profissional. O senhor me acompanha numa dose de uísque?
            “Profissional uma pinóia, quer encher o rabo de álcool!”, pensei. Agradeci. Ele me disse que beberia mesmo assim.
            – Então, o senhor vai me contar que tipo de sonho teve, ou quê?
            – Foi um sonho... Um sonho erótico.
            – Isso é comum. Não há com que se preocupar. A maioria das pessoas tem sonhos eróticos. Posso até dizer que isso é um clichê, senhor Esteban. Mas, sinceramente, não vejo motivos para o senhor estar aqui se foi só um sonho erótico.
            – Acontece que sou casado! – respondi, num tom áspero – Sou casado há 13 anos, e tenho dois filhos.
            – Entendo... O senhor já traiu a sua esposa, senhor Esteban?
            – Claro que não! Eu a amo... Amo muito a minha família.
            Ele me olhou como se notasse alguma coisa de diferente. Pediu permissão para acender um cigarro e antes mesmo de concedê-la ele o fez. Deu uma tragada lenta, procurou alguma coisa no ar e, ao fim de alguns segundos de silêncio, indagou, com certa petulância:
            – O senhor já teve algum tipo de relação homossexual, senhor Esteban?
            Respondi com um seco “Não”. Ele continuou a me fitar, como se fosse uma cobra prestes a dar o bote.
            – Olha, eu sou um profissional da psicologia, senhor Esteban. Um dos melhores da cidade. Não é porque uso tênis All Star, calça jeans e camisa de banda que o senhor vai me faltar com respeito. O senhor marcou uma consulta... Uma consulta que não é barata, como o senhor mesmo constatou. Então sugiro que o senhor desembuche logo!
A verdade é que vivia me escondendo de todos. Desde menino sentia esse tipo de atração. Adorava ir trabalhar com meu pai na fábrica. Não via a hora de dar 16h30 – hora exata em que todos os funcionários iam para o banho.  Achavam graça na minha repentina excitação. Riam e brincavam: “Olha lá o menino do Raimundo de pau duro!”. Eu ria, meio acanhado. Por mais estranho que parecesse, meu pai enchia o peito e dizia, todo pomposo: “Esse é meu moleque”.
Confessei a ele minha homossexualidade enrustida e pus-me a chorar, como uma criança assustada que tem o brinquedo tomado por um estranho.
Fui sacudido por Maria Helena, que me acordava num calmo ritmo:
– Esteban?... Esteban?...
– Ãn?! O que aconteceu? – perguntei meio assustado
– Você estava sonhando, foi isso que aconteceu. Estava chorando. Está tudo bem, Esteban?
Fiquei meio constrangido pela situação. Fiz que sim com a cabeça, só para Maria Helena cessar aquele olhar cortante. Pensei, durante um tempo: “Mas era tão real: o consultório, a pintura tosca, o Dr. Mendonça e suas esquisitices, a secretária tonta... Tudo”. Tomei Maria Helena pelos braços e a beijei freneticamente, com os olhos camuflados de desejo: “Eu te quero agora! Quero te foder!”, é o que meus olhos diziam. Rolamos pela cama numa desprendida alucinação sexual.
Na manhã seguinte pesquisei nos classificados, na seção de Psicologia: Dr. Mendonça... Dr. Mendonça... Não havia nada.

Gilmar Ribeiro (piu!)
18/11/2011, às 11h06
*Não revisado
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário