A chuva
caiu de maneira severa e massageou o chão com suas gotas impermeáveis; até
parecia que ele cederia aos seus caprichos de chuva seca. Estava sozinho em
casa, acompanhado, somente, pela Solidão, esta que anda à minha volta há muito
tempo, mesmo esse tempo sendo tão pouco. As luzes se apagaram e tudo ficou
nitidamente claro; não enxergava um palmo à minha frente. Caminhei
cautelosamente às pressas e sentei-me no canto mais claro da sala, na cadeira
de cor escura, onde ninguém me enxergaria, e clareei as minhas próprias ideias com
pensamentos sombrios e alheios. Abri a primeira gaveta à procura de qualquer falta
de luz; “CADÊ? ONDE ESTÁ? AQUI!”. Risquei um fósforo, acendi um toco de vela e
coloquei-me em um sorumbático e turvo silêncio; inflamei o peito gelado e sussurrei,
aos gritos, qualquer coisa que ninguém escutou, afinal não havia ninguém e, a
essa altura, a Solidão já tinha me deixado a sós comigo mesmo; exclamei: “VAI
TARDE!”. Ela bateu a porta e entrou, para nunca mais voltar.
...
As ideias
estavam todas pela metade e eu as compreendia por completo; somente a ideia de
Deus me veio à cabeça de maneira clara
e objetiva, então não a compreendi de
imediato; depois de alguma reflexão, afastei-a com as mãos espalmadas como quem
diz “Basta!”; então Deus carregou sua ideia nas mãos limpas de barro e caminhou
para dentro do lado de fora; depois de algum tempo voltou com um disco do Led
Zeppelin e o reproduziu em seu velho toca-discos; então recitou um trecho de um
poema seu e disse que era um dos melhores, ao menos na sua humilde opinião:
“...Pelo que sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas
perseguições, nas angústias por amor de Cristo. Porque quando estou fraco então
sou forte.”; depois me perguntou o que eu tinha achado; respondi a Ele com
demasiada sinceridade:
– Gostei
bastante. Só não sei quem é Cristo. Quem é?
Ele
riu e respondeu:
– É
o meu filho.
– O
senhor tem filho?
–
Alguns.
– Corajoso
o senhor, hein!
– Você
não faz ideia.
Então
rimos um bocado. Depois Ele me disse que precisaria ir embora.
– Toma
um café comigo? – pedi a Ele, suplicante.
– Não
posso. Tenho coisas a fazer.
– Então
espera essa impermeabilidade passar um pouco, ou mesmo esse clarão cessar.
– Tá
bem, tá bem.
Preparei
um café e então conversamos por mais alguns minutos, sem dizer sequer uma
palavra. Depois ele me disse que iria embora; perguntei:
– O
senhor tem certeza? Ainda tá muito claro.
Fez
que sim com a cabeça e caminhou para dentro do lado de fora.
– Adeus,
Deus! – disse a ele; rimos com a estranha sonoridade do que falei.
...
A chuva
cessou, as luzes se acenderam e tudo voltou a ser escuro. Abri a janela e vi o
chão novamente molhado. A campainha tocou; caminhei até a porta e a fechei,
então dei com as vistas em Dona Simone.
–
Tudo bem, meu filho?
–
Tudo sim. E a senhora?
–
Vou bem. Só essa chuva chata que não me deixou sair.
–
Pois é. Chato essa chuva seca.
–
Nem me diga. Essa chuva... Seca?! Você disse seca?
–
Disse, por quê?
– É
que... – fez uma pequena pausa e me encarou com olhar desconfiado. – A sua mãe
está?
– Tá
não. Agora eu tou sozinho.
– É
mesmo?
–
Sim, sim.
– É
tão ruim ficar sozinho, não é mesmo?
–
Mas quase agora eu tinha visita.
–
Visita? Algum amigo, alguma namorada?
– e sorriu maliciosamente.
–
Primeiro tava com a Solidão. Daí ela se encheu da minha companhia e se foi.
–
Solidão?!
– É.
Depois conversei um pouco com Deus. Ele tava aqui quase agora.
–
Deus está em tudo quanto é canto, menino. – disse-me Dona Simone com
naturalidade; e depois concluiu, triunfantemente: – Deus é onipresente.
–
Mas ele foi embora já faz algum tempo. Escutamos Led Zeppelin, ele me recitou
um dos seus poemas, tomamos café...
–
Led o quê? E que história é essa de poema?
– Led
Zeppelin, uma banda de rock. – respondi com a mesma naturalidade da onipresença
de Deus; depois dei continuidade à minha prosa: – Quanto ao poema, é um que diz
qualquer coisa sobre estar forte na fraqueza, por causa de Cristo, que é filho
de Deus.
– Que
papo é esse, menino?! Deus não fala assim com as pessoas! – e tinha um olhar
que oscilava entre reprovação e inveja.
–
Pois comigo falou.
–
Deus te falou essas coisas?
–
Pessoalmente.
Dona
Simone caiu dura em minha frente e eu não sabia o que fazer. Gritei e alguns
vizinhos vieram socorrer a velha; me perguntaram o que eu havia feito e eu
disse a verdade: “Não fiz absolutamente nada”; me olharam torto por algum tempo
e depois se empenharam em prestar socorro à Dona Simone, que saiu
escandalizando que eu estava louco, que estava blasfemando, que tinha o Cão no
corpo e tudo mais. Cruzei os braços e nem dei muita trela. Depois que a vi fora
do meu campo de visão, fui escutar o Led Zeppelin que Deus havia esquecido aqui
em casa. Foi então que reparei na capa e pude ler o que estava escrito, em
inglês: “From: God / To: Gilmar Ribeiro”.
Gilmar Ribeiro (piu!)
24/10/2012,
às 02h44
Não
revisado