terça-feira, 30 de outubro de 2012

Antítese da chuva

A chuva caiu de maneira severa e massageou o chão com suas gotas impermeáveis; até parecia que ele cederia aos seus caprichos de chuva seca. Estava sozinho em casa, acompanhado, somente, pela Solidão, esta que anda à minha volta há muito tempo, mesmo esse tempo sendo tão pouco. As luzes se apagaram e tudo ficou nitidamente claro; não enxergava um palmo à minha frente. Caminhei cautelosamente às pressas e sentei-me no canto mais claro da sala, na cadeira de cor escura, onde ninguém me enxergaria, e clareei as minhas próprias ideias com pensamentos sombrios e alheios. Abri a primeira gaveta à procura de qualquer falta de luz; “CADÊ? ONDE ESTÁ? AQUI!”. Risquei um fósforo, acendi um toco de vela e coloquei-me em um sorumbático e turvo silêncio; inflamei o peito gelado e sussurrei, aos gritos, qualquer coisa que ninguém escutou, afinal não havia ninguém e, a essa altura, a Solidão já tinha me deixado a sós comigo mesmo; exclamei: “VAI TARDE!”. Ela bateu a porta e entrou, para nunca mais voltar.
...
As ideias estavam todas pela metade e eu as compreendia por completo; somente a ideia de Deus me veio à cabeça de maneira clara e objetiva, então não a compreendi de imediato; depois de alguma reflexão, afastei-a com as mãos espalmadas como quem diz “Basta!”; então Deus carregou sua ideia nas mãos limpas de barro e caminhou para dentro do lado de fora; depois de algum tempo voltou com um disco do Led Zeppelin e o reproduziu em seu velho toca-discos; então recitou um trecho de um poema seu e disse que era um dos melhores, ao menos na sua humilde opinião: “...Pelo que sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias por amor de Cristo. Porque quando estou fraco então sou forte.”; depois me perguntou o que eu tinha achado; respondi a Ele com demasiada sinceridade:
– Gostei bastante. Só não sei quem é Cristo. Quem é?
Ele riu e respondeu:
– É o meu filho.
– O senhor tem filho?
– Alguns.
– Corajoso o senhor, hein!
– Você não faz ideia.
Então rimos um bocado. Depois Ele me disse que precisaria ir embora.
– Toma um café comigo? – pedi a Ele, suplicante.
– Não posso. Tenho coisas a fazer.
– Então espera essa impermeabilidade passar um pouco, ou mesmo esse clarão cessar.
– Tá bem, tá bem.
Preparei um café e então conversamos por mais alguns minutos, sem dizer sequer uma palavra. Depois ele me disse que iria embora; perguntei:
– O senhor tem certeza? Ainda tá muito claro.
Fez que sim com a cabeça e caminhou para dentro do lado de fora.
– Adeus, Deus! – disse a ele; rimos com a estranha sonoridade do que falei.
...
A chuva cessou, as luzes se acenderam e tudo voltou a ser escuro. Abri a janela e vi o chão novamente molhado. A campainha tocou; caminhei até a porta e a fechei, então dei com as vistas em Dona Simone.
– Tudo bem, meu filho?
– Tudo sim. E a senhora?
– Vou bem. Só essa chuva chata que não me deixou sair.
– Pois é. Chato essa chuva seca.
– Nem me diga. Essa chuva... Seca?! Você disse seca?
– Disse, por quê?
– É que... – fez uma pequena pausa e me encarou com olhar desconfiado. – A sua mãe está?
– Tá não. Agora eu tou sozinho.
– É mesmo?
– Sim, sim.
– É tão ruim ficar sozinho, não é mesmo?
– Mas quase agora eu tinha visita.
– Visita? Algum amigo, alguma namorada? – e sorriu maliciosamente.
– Primeiro tava com a Solidão. Daí ela se encheu da minha companhia e se foi.
– Solidão?!
– É. Depois conversei um pouco com Deus. Ele tava aqui quase agora.
– Deus está em tudo quanto é canto, menino. – disse-me Dona Simone com naturalidade; e depois concluiu, triunfantemente: – Deus é onipresente.
– Mas ele foi embora já faz algum tempo. Escutamos Led Zeppelin, ele me recitou um dos seus poemas, tomamos café...
– Led o quê? E que história é essa de poema?
– Led Zeppelin, uma banda de rock. – respondi com a mesma naturalidade da onipresença de Deus; depois dei continuidade à minha prosa: – Quanto ao poema, é um que diz qualquer coisa sobre estar forte na fraqueza, por causa de Cristo, que é filho de Deus.
– Que papo é esse, menino?! Deus não fala assim com as pessoas! – e tinha um olhar que oscilava entre reprovação e inveja.
– Pois comigo falou.
– Deus te falou essas coisas?
– Pessoalmente.
Dona Simone caiu dura em minha frente e eu não sabia o que fazer. Gritei e alguns vizinhos vieram socorrer a velha; me perguntaram o que eu havia feito e eu disse a verdade: “Não fiz absolutamente nada”; me olharam torto por algum tempo e depois se empenharam em prestar socorro à Dona Simone, que saiu escandalizando que eu estava louco, que estava blasfemando, que tinha o Cão no corpo e tudo mais. Cruzei os braços e nem dei muita trela. Depois que a vi fora do meu campo de visão, fui escutar o Led Zeppelin que Deus havia esquecido aqui em casa. Foi então que reparei na capa e pude ler o que estava escrito, em inglês: “From: God / To: Gilmar Ribeiro”.

Gilmar Ribeiro (piu!)                                                    
24/10/2012, às 02h44
Não revisado              

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Lady V.



Trepamos por duas horas ininterruptas, depois ela acendeu um cigarro e me encarou por algum tempo.
            – Você é divertido, sabia?
            – É?
            – Unhum.
            – Qual é mesmo o seu nome?
            – Verônica.
            Depois nos beijamos um pouco mais; Verônica tinha um gosto amargo de nicotina na boca.
            – O seu é Ribamar, certo?
            – Não. Ribamar é o meu irmão mais velho.
            – Sim, sim.
            – Eu sou o Ricardo. Mas pode me chamar de Ri.
            – Ri?
            – Sim.
            ...
            Verônica acendeu outro cigarro.
            – Você tem mesmo que fumar essa droga?
            – Isso não é droga
– Não? E que cigarro é esse?
            – Vila Rica.
            – ha ha ha ha...
            – Qual é a graça?
            – É que eu ia comprar esse cigarro para a minha irmã mais velha, quando ela fumava escondido; eu ia no ponto de ônibus que tinha perto de casa.
            – É mesmo, isso é cigarro de ponto de ônibus. ha ha ha...
            – Melhor que Eight.
            – Eu fumo Eight de boa.
            – Tá doida, é cigarro de mendigo!
            – É nada. Só tem que se acostumar.
            – Acostumar a quê, à ideia de um enfisema pulmonar?
            – Idiota! ha ha ha ha...
            ...
            – Você vai ficar aí em pé, me olhando?
            – Já vou deitar.
            – Vem logo que ele quer mais.
            – Um minuto.
            – O que, que cê tá fazendo, Verônica? Deita um pouco aqui comigo.
            Verônica acendeu mais um cigarro e me disse:
            – Tou pensando numa coisa.
            – Em quê?
            – Acho que vamos morar juntos. – disse com serena naturalidade.
            – Como é?
            – É só por uns três dias.
            – Três dias?!
            – Olha, eu fico quietinha, você nem vai me notar.
            – Não sei não, hein...
            – Relaxa. E cadê ele que agora é ela que quer mais.
            ...
            – Verônica, cê viu tal coisa?
            – Não.
            – Porra, tava aqui não faz dois minutos.
            – Será que você não esqueceu na casa de Fulano?
            – Não. Tava aqui, ó.
            – Não vi. – e balançava a cabeça negativamente.
            – Engraçado...
            ...
            – Tou com fome.
            – Tem arroz no armário e carne na geladeira. Descongela no micro-ondas.
            – Ahhhhhh! – disse histérica – Agora você quer que eu cozinhe?!
            – Não, não é isso. É que...
            – Ai! Prepara alguma coisa pra mim, vai! – e saiu em direção ao quarto; concluiu: – E PREPARA UM SUCO!
            ...
            – Verônica, você vai demorar?
            – Não. Já tou saindo.
            – É que eu tou atrasado para o trabalho.
            – Um minuto.
            – Eu tou apertado. Preciso mijar, caralho!
            – Ai, que saco! Não se tem privacidade por aqui, viu! – e saiu, revoltadíssima.
            ...
            Demorou um pouco, mas, depois de algum tempo de perpétua convivência, disse a real para a menina:
            – Você precisa ir embora.
            – Mas por quê?
            – Verônica, você está aqui há... – olhei no relógio e concluí, admirado: – Há sete horas! E já torrou o que me era possível ter de paciência. Você vai embora.
            – Mas eu não...
            – Mas nada, Verônica. Cê vai embora e ponto final.
            – Então me deixa pelo menos tomar um banho. Ok?
            – Só um banho?
            – Claro. Depois vou embora. Prometo.
            – Não sei...
            – Palavra de honra.
            – Tá. Vou te pegar uma toalha.
            ...
            Verônica estava no banheiro há algum tempo; estranhei que o chuveiro estivesse desligado, mas não falei nada; “Deve tá fazendo coisa de mulher”, pensei.
            ...
            Passado mais de vinte minutos de surdez completa no banheiro – não se ouvia nem um piu – bati à porta:
            TOC TOC TOC
            – Verônica?
            Nenhuma resposta.
            TOC TOC TOC
            – Verônica?
            Entrei no banheiro e dei com as vistas em Verônica, caída ao chão; ao lado havia uma cartela de Lexotan.


Gilmar Ribeiro (piu!)
19/10/2012, às 11h12
Não revisado