sábado, 21 de abril de 2012

A 7 chaves


            Michele entrou às pressas no quarto. Tinha respiração ofegante e face marcada de pânico. Revirou todo o guarda-roupa, todas as divisórias e gavetas. “Onde está?... Deve estar por aqui... Onde, meu Deus, onde?”. Sentou-se no chão e, estática como uma rocha, pôs-se a pensar. Algum tempo depois se levantou bruscamente, olhou em redor do quarto, como se soubesse, bem lá no âmago, onde estava o tal objeto. Seguiu para a sala e serviu uma dose de uísque. “Blended Whisky, dizia na garrafa, decerto era escocês. Bebeu tudo numa só golada, o que provocou uma expressão desgostosa de nojo. Franziu  os olhos pensativos e, sem muito hesitar, lançou injúrias contra Pedro, seu irmão caçula: “Aquele amaldiçoado de uma figa deve ter pegado! Eu mato, eu juro que mato”.

            Pensou o que faria se o menino a entregasse. Olhou fixamente para o espelho do corredor que liga a sala à cozinha. Teve vontade de quebrá-lo, mas se conteve. Que mentira teria de contar a seus pais se, por ironia do destino, Pedro caísse da escada e quebrasse o pescoço? “Ele saiu correndo, papai, disse pra não descer as escadas correndo”; “Se pendurou no corrimão e deslizou, como se fosse um abobado, quando vi já estava... Deus, meu irmãozinho – disfarçaria pranto”; “Estava na cozinha preparando o lanche de Pedro, mamãe. A senhora fica uma arara quando ele não toma o lanche da tarde. Foi tudo muito rápido, eu não pude fazer nada, mamãe”.
            A vontade de matar Pedro era gigantesca, mas sabia que a peste do menino era intocável.  “Onde está?”, sussurrou com pesar. A campainha tocou. Caminhou até a porta, olhou pelo olho-mágico e pôde ver aqueles olhos verdes de lagartixa. Era o senhor Omar. “E agora, o que essa múmia infeliz quer?!”. Atendeu.
            – Boa tarde, senhor Omar.
            – Boa tarde, minha linda. Por acaso o Lucas não está por aí?
            Michele observava atentamente a casa de dona Conceição. Estava maior, pintada de azul escuro, com um portão verde musgo e um enorme pé de abacate na frente. Não se lembrava da casa naquelas dimensões, da cor, do portão verde musgo, tampouco do pé de abacate. Foi surpreendida pela voz cansada do senhor Omar.
            – Michele? Michele? Você estava... Como é mesmo que vocês dizem? Viajando. – riu.
            – Desculpe-me é que eu... – olhou para o pé de abacate – Não, não está. Ia perguntar agora mesmo se o Pedro não estava lá. Parece que esses dois tomaram chá de sumiço. – riu forçadamente – Agora se o senhor me dá licença tenho muitas coisas a fazer. Foi muito bom vê-lo. Mande saudações à dona Mirtes. Tchau, tchau. – bateu a porta na cara do homem.
            Roeu a unha do polegar, em sinal de ansiedade. Foi até o quarto dos pais, que estavam em um churrasco na casa do tio Milton – um daqueles churrascos chatíssimos de velhos nordestinos que só sabem falar aos berros, como um bando de animais. Procurou na caixa de jóias da mãe. Sabia que seria uma ótima arapuca escondê-lo ali, pois a mãe não passava um dia sequer sem fuçar na tal caixa, repleta de adornos baratos que ganhara do pai. Abriu a caixa e procurou com demasiado anseio, na esperança de encontrá-lo ali. Não havia nada além das velhas bijuterias desbotadas. Procurou por mais algum tempo no quarto dos pais, sem muito sucesso.
            Fez uma última busca por todos os cômodos da casa: sala, cozinha, banheiro, área de serviço... Nada. Voltou ao seu quarto e deitou-se um pouco, a fim de esquecer a importância em manter a discrição do tal objeto. Adormeceu.
            Foi acordada pela mãe.
            – Levanta, menina, já é meio-dia.
            Saltou da cama rapidamente. Ainda meio atordoada pôs-se a pensar: “E se ela encontrou? E se Pedro me entregou? E agora?!”. Perguntou, fingindo interesse:
            – E aí, como foi o churrasco?
            – Churrasco? Que churrasco?
            – Ah mãe, o churrasco na casa do tio Milton. Não se faça de desentendida.
            – Cê tá endoidando, menina! O Milton não faz churrasco há... Faz um bocado de tempo.
            Caminhou apressadamente até o guarda-roupa. Abriu a porta do meio, verificou na terceira gaveta, embaixo da saia jeans. Estava lá.

Gilmar Ribeiro (piu!)
18 de novembro de 2011, às 11h06
* Não revisado

domingo, 8 de abril de 2012

Metalinguagem



            – Próximo. – anunciou a secretária.

Mediu-me dos pés à cabeça e indagou, lendo a ficha com certa dificuldade:
 – O senhor é o senhor Esteban...Cunha...Machado?
Fiz que sim com a cabeça e adentrei ao consultório. Lugar simples, nada das frescuras que estou acostumado a ver nos outros consultórios. Uma pintura tosca na parede frontal, com alguns rabiscos pintados em cores primárias. “Quais são mesmo as cores primárias?”, me ocorreu. Fui surpreendido pela voz rouca do Dr. Mendonça:
            – Gostou de alguma coisa? Posso indicar a minha decoradora. – riu – É a minha esposa. Margareth nasceu com uma veia artística muita aguçada. O senhor é o senhor Esteban, não?
            Mais uma vez deixei que minha cabeça respondesse por mim. Era um homem magro, aparentava uns 55 anos. Tinha cabelos grisalhos, olhos azuis e aspecto padecido. Reparei que ele usava tênis All Star, calça jeans e camisa de banda.
            – É Pink Floyd. – disse-me num tom amistoso – Ideal para expandir as ideias. – fez um sinal que remeteu ao uso de maconha. Ri, meio sem vontade. – Então, o que o traz aqui, senhor Esteban?
            – Eu... Eu...
– Sente-se, por favor. – sugeriu com a cara esgarçada.
– Me disseram que o senhor é o melhor psicólogo da cidade.
            – Não gosto de falsa modéstia. Sou um dos melhores, mas não o melhor. Aprendi bastante coisa na faculdade, e ainda mais trabalhando aqui. Faz 18 anos que tenho esse consultório, sabia? 18 anos no mesmo lugar. É bastante tempo, o senhor não acha?
            Respondi que sim. Ele deu continuidade ao seu discurso:
            – 18 anos... Não são meses, tampouco dias. São 18 anos. Só essa secretária que é meio tantã. – disse ele com sarcasmo – O senhor não achou ela meio lentinha? Pode falar. Todos acham. – riu.
            Balancei a cabeça afirmativamente e sorri. Até ia arriscar alguma piada acerca da destreinada secretária, mas ele logo se adiantou:
            – Ela está comigo há duas semanas. Já estou procurando outra pessoa para substituí-la. Ela é muito burrinha, a coitada. Ai, ai... E aí, vai me contar o que o trouxe aqui, ou vou ter que falar durante... – olhou no relógio – os 54 minutos que lhe restam? A minha hora não é barata, senhor Esteban.
            – Não, não é.
            – Então o que o trouxe aqui?
            – É que eu tive um sonho...
            – Que tipo de sonho?
            – É que... Não fico à vontade de falar com um...
            – Estranho? Pode ficar sossegado. Sei que tenho esse jeito descontraído, mas sou 100% profissional. O senhor me acompanha numa dose de uísque?
            “Profissional uma pinóia, quer encher o rabo de álcool!”, pensei. Agradeci. Ele me disse que beberia mesmo assim.
            – Então, o senhor vai me contar que tipo de sonho teve, ou quê?
            – Foi um sonho... Um sonho erótico.
            – Isso é comum. Não há com que se preocupar. A maioria das pessoas tem sonhos eróticos. Posso até dizer que isso é um clichê, senhor Esteban. Mas, sinceramente, não vejo motivos para o senhor estar aqui se foi só um sonho erótico.
            – Acontece que sou casado! – respondi, num tom áspero – Sou casado há 13 anos, e tenho dois filhos.
            – Entendo... O senhor já traiu a sua esposa, senhor Esteban?
            – Claro que não! Eu a amo... Amo muito a minha família.
            Ele me olhou como se notasse alguma coisa de diferente. Pediu permissão para acender um cigarro e antes mesmo de concedê-la ele o fez. Deu uma tragada lenta, procurou alguma coisa no ar e, ao fim de alguns segundos de silêncio, indagou, com certa petulância:
            – O senhor já teve algum tipo de relação homossexual, senhor Esteban?
            Respondi com um seco “Não”. Ele continuou a me fitar, como se fosse uma cobra prestes a dar o bote.
            – Olha, eu sou um profissional da psicologia, senhor Esteban. Um dos melhores da cidade. Não é porque uso tênis All Star, calça jeans e camisa de banda que o senhor vai me faltar com respeito. O senhor marcou uma consulta... Uma consulta que não é barata, como o senhor mesmo constatou. Então sugiro que o senhor desembuche logo!
A verdade é que vivia me escondendo de todos. Desde menino sentia esse tipo de atração. Adorava ir trabalhar com meu pai na fábrica. Não via a hora de dar 16h30 – hora exata em que todos os funcionários iam para o banho.  Achavam graça na minha repentina excitação. Riam e brincavam: “Olha lá o menino do Raimundo de pau duro!”. Eu ria, meio acanhado. Por mais estranho que parecesse, meu pai enchia o peito e dizia, todo pomposo: “Esse é meu moleque”.
Confessei a ele minha homossexualidade enrustida e pus-me a chorar, como uma criança assustada que tem o brinquedo tomado por um estranho.
Fui sacudido por Maria Helena, que me acordava num calmo ritmo:
– Esteban?... Esteban?...
– Ãn?! O que aconteceu? – perguntei meio assustado
– Você estava sonhando, foi isso que aconteceu. Estava chorando. Está tudo bem, Esteban?
Fiquei meio constrangido pela situação. Fiz que sim com a cabeça, só para Maria Helena cessar aquele olhar cortante. Pensei, durante um tempo: “Mas era tão real: o consultório, a pintura tosca, o Dr. Mendonça e suas esquisitices, a secretária tonta... Tudo”. Tomei Maria Helena pelos braços e a beijei freneticamente, com os olhos camuflados de desejo: “Eu te quero agora! Quero te foder!”, é o que meus olhos diziam. Rolamos pela cama numa desprendida alucinação sexual.
Na manhã seguinte pesquisei nos classificados, na seção de Psicologia: Dr. Mendonça... Dr. Mendonça... Não havia nada.

Gilmar Ribeiro (piu!)
18/11/2011, às 11h06
*Não revisado
 

?

Meia-noite e quinze, a rua já está tomada pelos cachorros. São sete, ou oito machos atrás de uma única fêmea, uma cachorrinha marrom de olhos pequenos e cara suja. Ela anda de um lado para o outro se esquivando das muitas investidas que recebe. Alguns, mais motivados pela libido instintiva, tentam subir na pequena vira-lata a qualquer preço, mas ela rejeita bravamente a todos. Observo toda a situação de longe e acho muita graça.

Termino o cigarro e desço as escadas pisando em ovos para não ser percebida. Deveria estar em casa há duas horas. Sei o que me aguarda na sala quando abrir a porta: minha mãe me encarando com aquele olhar torturante que não diz nada, ao mesmo tempo em que diz tudo. Acendo mais um cigarro e dou três tragadas – uma, duas...uh! três; viro a maçaneta já sabendo a grandeza do sermão que escutaria pelo meu atraso. Entro com o maior cuidado do mundo, no entanto não há ninguém em casa.

Vou até a cozinha e encontro, afixado na geladeira, o seguinte recado: “Fomos à casa do tio Milton. Comporte-se. Mamãe”. Agradeço a Deus por estar sozinha em casa, mesmo sendo ateia. Bebo um gole d’água, sento-me à mesa e penso em minha vida e todos os problemas que a compõe. Penso na estranha dança que os pobres caninos faziam na rua, em toda aquela cheiração de rabo, na vã esperança dos machos de finalizar o acasalamento com a cachorrinha de cara suja. Penso nisso tudo com ar de desprezo e angústia, talvez um pouco de incompreensão. Ligo o rádio e sintonizo numa estação qualquer. “Blues da piedade”, na versão de Cássia Eller, acho simplesmente fantástico. Acendo mais um cigarro e observo a densa fumaça que se desfaz com preguiça e vaidade. Vou ao banheiro.

Sento-me no vaso e fico, durante algum tempo, num profundo estado de reflexão: “Por quê? Por que justo comigo?”. Levanto-me num salto, dispo-me completamente e entro no box, a fim de tirar toda sensação ruim, aquele nojo impregnado em minha pele. Inútil, é como se a minha alma estivesse encardida. Visto as mesmas roupas sem ao menos me secar. Acendo mais um cigarro e caminho em direção a porta da sala. 

Subo as escadas e sento-me no primeiro degrau. Os cachorros ainda estão ali, ainda bolinando a pobre cachorrinha de cara suja. Acendo mais um cigarro e deito-me na calçada. Mando uma mensagem para a Cláudia explicando, meio que por cima, tudo que aconteceu. Menos de dois minutos depois recebo uma resposta: “Você precisa falar com alguém. A sua mãe já sabe?”. “Você está doida, Cláudia. A minha mãe não pode nem sonhar”. “Está bem, mas depois não diga que não avisei. E você deveria ser menos dramática, Cris. Boa noite”. Dramática? Como assim dramática? “Pensei que podia contar com você. Você não é minha amiga! Adeus.”. Não obtive nenhuma resposta.

Acendo um último cigarro e, como se soubesse aonde ir, caminho até a avenida principal. Um carro prata para e um estranho me pergunta qualquer coisa. Respondo, sem dar muita atenção: “Vira a próxima à direita”. “O quê?”, pergunta o estranho. “Posso ir com você?”. Ele hesita por um instante, me fitando com um olhar atônito, mas logo indaga: “Claro, mas pra onde você vai?”. “Não sei”. Entro no carro e sigo com o desconhecido, rumo ao desconhecido.


Gilmar Ribeiro (piu!)
08/04/2012, às 13h52
*Não revisado

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Lata de ervilhas

Sinto-me inquieto, insone. Não há literatura que dê fim ao sono. Li alguns contos de Lygia Fagundes Telles, algumas crônicas de Rubem Braga, um trecho de Admirável Mundo Novo... Nada me cansa as vistas. Acho que é por causa do pesadelo que tive na madrugada de segunda para terça... ou de terça para quarta, não lembro. Era tarde, já passava das 01h30. Assistia tevê, um talkshow qualquer, com banda, convidados, reportagens despretensiosas e tudo mais. Programei o sleep para 45 minutos. Ao fim do tempo a tevê desligou e eu, envolvido por um tédio sem fim, custei a dormir. Acho que rolei por meia-hora pela cama encostada na parede com cheiro de mofo – a umidade estava terrível, coisa bem comum nessa época do ano –, e só depois adormeci.

Acordei aos berros, com a nuca encharcada de suor. Estava sozinho em casa. Minha mãe estava na casa da tia Irma, que não vai bem de saúde – não sei por que não morre logo a infeliz. Tive um sonho horrível: sonhei que era brutalmente assassinado por três bandidos. Sonho horrível mesmo. Estávamos numa festa, Fabrício e eu, e arrumávamos confusão com uns delinquentes. Fomos rendidos e depois levados a um galpão vazio, com cheiro de urina – pude sentir o mau-cheiro no sonho. Era um preto de dentes podres, com cara de quem mata por meio tostão, um gordo alto, carrancudo, de brincos brilhantes e outro moleque com aspecto de sujo, de cara sardenta, parecia uma banana podre. Éramos assassinados ao som estrondoso das metralhadoras, seguido das risadas sádicas e secas. Até mesmo senti o calor dos projéteis atravessando meu corpo imóvel.  Acordei atônito e ofegante. Cobri a cabeça como  uma criança assustada, numa tentativa frustrada de me esconder do que quer que seja. Fiquei apavorado, sem conseguir respirar direito. Ao cabo de 10 minutos me levantei. Caminhei um pouco pelo quarto. Olhei-me no espelho: tinha cara de pânico, como quem tinha visto a morte de perto. Tomei um gole d’água.

Não hesitei em mandar uma mensagem de texto para o Fabrício: “Cara, tive um sonho horrível: sonhei que éramos metralhados por três bandidos. Sei que é paranóia, mas você está bem? Desculpe-me pelo horário. Cláudio”. Ao fim de 15 minutos o filho da puta não tinha respondido. Fiquei preocupado. Achei que alguma coisa tinha acontecido. E pior que estava sozinho em casa. Mandei outra mensagem: “Fabrício, você pegou minha mensagem? Responde, por favor! Cláudio”. Não muito tempo depois obtive a resposta: “Peguei a porcaria da mensagem. Estou bem sim. Agora se você não me deixar dormir eu mesmo vou te metralhar, seu cachorro! Vê se dorme. Fica com Deus”. Fiquei aliviado em saber que ele estava bem. Tomei outro gole d’água.

O relógio marcava 04h35 da manhã. Poderia tentar descansar as vistas, talvez se tomasse um dos calmantes do meu padrasto. Garanto que ele nem perceberia, vive sempre bêbado o desgraçado. Sai procurando a caixa de remédios. Onde está... Onde está... Aqui! Olho a data de validade: 07/2006. Droga! Vou até o quarto da minha irmã mais velha – que estava na casa do namorado –, e procuro a caixinha de maconha dela. Talvez se fumar um baseado consiga dormir. Nada. Mando uma mensagem: “Si, onde tá o seu kit beck? Tô precisando. Cláudio”. Nada da vadia responder. Decerto está transando. Desisto e vou para o quarto.


Tranco a porta. Olho em baixo da cama, com ar de assombrado. Ajoelho-me e arrisco uma oração: “Pai Nosso que estais no Céu... Santificado seja o Vosso nome... Venha a nós...”. Pro inferno com isso! Acendo um cigarro. Fico admirado olhando para o teto, pensando no terrível sonho que tive, pensando nos rostos dos sacanas que me vararam como se eu fosse uma lata de ervilhas. Pensando, em voz alta: que diabos o Fabrício quis dizer com “fique com Deus”?


Gilmar Ribeiro (piu!)
18 de novembro de 2011, 11:06
*Não revisado 

domingo, 1 de abril de 2012

Nós


Fumávamos compulsivamente. Sandro Stone logo se adiantou e começou a preparar mais um cigarro de maconha. Laura disse, toda pomposa: “Você dichava que eu bolo”. Todos riram com o despretensioso trato ilícito. Ríamos intensamente, mas não sabíamos se pela frouxa piada, ou se era apenas um dos efeitos do entorpecente. Não importava, estávamos felizes.

Antônio levantou-se e foi até a cozinha buscar algumas cervejas e qualquer coisa para comermos. “Que que tem pra comer aqui, Jorge?”. Jorge estava catastroficamente bêbado e não podia responder. Sheila pegou um blush e um batom e o maquiou. Todos compactuaram com aquele velho clichê que é maquiar o amigo embriagado. Ríamos como se fôssemos morrer de tanto rir. Sheila até mesmo arriscou alguns passos de dança para comemorar a triunfante peripécia, mas perdeu o equilíbrio e caiu sentada. Gritava desesperadamente: “Meu cu, acho que quebrei meu cu! Ai, ai, gente, alguém me ajuda”. Ria de si mesma e nós, envolvidos pelo clima extremamente risível, ríamos também.

Fomos à varanda e ficamos lá ouvindo a majestosa voz de Raul Seixas cantando “Pedro onde cê vai eu também vou... Mas tudo acaba onde começou”. Uivos eram lançados a quilômetros de distância: “Cara, eu amo o Raul... Amo. Vai Raul!”, dizia Steban, sob o efeito de cocaína. Depois caiu no chão e simulou uma rápida convulsão. Levantou-se urinando as próprias calças de tanto rir das nossas caras, pois estávamos em estado de choque, pensando que o desgraçado estava tendo algum piripaque. Um coral de sete vozes entoou um belo “filho da puta!”. Depois todos rimos com a situação. Steban, reconhecendo que não estava muito bem, foi para casa descansar.

Depois disso, todos foram se dispersando aos poucos. Sandro Stone tinha de voltar para casa, pois sabia que sua esposa o esperava – a essa altura provavelmente furiosa. Ele havia dito que viria aqui em casa e que não demoraria, mas ficou mais de quatro horas – e pior – com o celular desligado. Prometera a ela também que não usaria nada naquela noite – o que falhou em cumprir. Ofereceu uma carona à Laura e Edgard e os três partiram. Os outros também se foram, como se realmente tivessem algo importante a fazer ou alguém preocupado a sua espera. “Tão infelizes quanto eu, ou até mais”, pensei.

“Quero ouvir só mais um música do Pearl Jam”, disse Sheila. “Tá, mas primeiro me ajuda a colocar o Jorge na cama, não quero que ele tenha a coluna toda estropiada. Esse sofá é horrível!”. Rimos, dessa vez sem muito entusiasmo. Ouvimos “Black”, uma de minhas favoritas. Acompanhei Sheila até o portão e ela, assim como os outros, também se foi.

Ficamos apenas Jorge e eu, sozinhos como menores abandonados. Ele numa espécie de coma profundo... Acendi um cigarro e me propus a beber uma última cerveja ao som de “Wish you were here”.

Jorge estava desmaiado na cama; tinha um sorriso de canto de boca como quem confessa aos quatro cantos do mundo: “Sim, fiz e faria tudo de novo”. Olhei para ele com um olhar bobo, meio apaixonado. Dei um beijo em seu rosto e fui me deitar no velho e desconfortável sofá.



Gilmar Ribeiro (piu!)
01/04/2012
Revisado por Alecs Diniz