domingo, 8 de abril de 2012

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Meia-noite e quinze, a rua já está tomada pelos cachorros. São sete, ou oito machos atrás de uma única fêmea, uma cachorrinha marrom de olhos pequenos e cara suja. Ela anda de um lado para o outro se esquivando das muitas investidas que recebe. Alguns, mais motivados pela libido instintiva, tentam subir na pequena vira-lata a qualquer preço, mas ela rejeita bravamente a todos. Observo toda a situação de longe e acho muita graça.

Termino o cigarro e desço as escadas pisando em ovos para não ser percebida. Deveria estar em casa há duas horas. Sei o que me aguarda na sala quando abrir a porta: minha mãe me encarando com aquele olhar torturante que não diz nada, ao mesmo tempo em que diz tudo. Acendo mais um cigarro e dou três tragadas – uma, duas...uh! três; viro a maçaneta já sabendo a grandeza do sermão que escutaria pelo meu atraso. Entro com o maior cuidado do mundo, no entanto não há ninguém em casa.

Vou até a cozinha e encontro, afixado na geladeira, o seguinte recado: “Fomos à casa do tio Milton. Comporte-se. Mamãe”. Agradeço a Deus por estar sozinha em casa, mesmo sendo ateia. Bebo um gole d’água, sento-me à mesa e penso em minha vida e todos os problemas que a compõe. Penso na estranha dança que os pobres caninos faziam na rua, em toda aquela cheiração de rabo, na vã esperança dos machos de finalizar o acasalamento com a cachorrinha de cara suja. Penso nisso tudo com ar de desprezo e angústia, talvez um pouco de incompreensão. Ligo o rádio e sintonizo numa estação qualquer. “Blues da piedade”, na versão de Cássia Eller, acho simplesmente fantástico. Acendo mais um cigarro e observo a densa fumaça que se desfaz com preguiça e vaidade. Vou ao banheiro.

Sento-me no vaso e fico, durante algum tempo, num profundo estado de reflexão: “Por quê? Por que justo comigo?”. Levanto-me num salto, dispo-me completamente e entro no box, a fim de tirar toda sensação ruim, aquele nojo impregnado em minha pele. Inútil, é como se a minha alma estivesse encardida. Visto as mesmas roupas sem ao menos me secar. Acendo mais um cigarro e caminho em direção a porta da sala. 

Subo as escadas e sento-me no primeiro degrau. Os cachorros ainda estão ali, ainda bolinando a pobre cachorrinha de cara suja. Acendo mais um cigarro e deito-me na calçada. Mando uma mensagem para a Cláudia explicando, meio que por cima, tudo que aconteceu. Menos de dois minutos depois recebo uma resposta: “Você precisa falar com alguém. A sua mãe já sabe?”. “Você está doida, Cláudia. A minha mãe não pode nem sonhar”. “Está bem, mas depois não diga que não avisei. E você deveria ser menos dramática, Cris. Boa noite”. Dramática? Como assim dramática? “Pensei que podia contar com você. Você não é minha amiga! Adeus.”. Não obtive nenhuma resposta.

Acendo um último cigarro e, como se soubesse aonde ir, caminho até a avenida principal. Um carro prata para e um estranho me pergunta qualquer coisa. Respondo, sem dar muita atenção: “Vira a próxima à direita”. “O quê?”, pergunta o estranho. “Posso ir com você?”. Ele hesita por um instante, me fitando com um olhar atônito, mas logo indaga: “Claro, mas pra onde você vai?”. “Não sei”. Entro no carro e sigo com o desconhecido, rumo ao desconhecido.


Gilmar Ribeiro (piu!)
08/04/2012, às 13h52
*Não revisado

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