terça-feira, 6 de abril de 2010

A VIDA COMO ELA É... E A MORTE?

Um dia desses, seu Otávio estava lendo “A vida como ela é”, de Nelson Rodrigues. Seu filho, de apenas sete anos, ao ver a leitura do pai, perguntou:

– Papai, o que você está lendo?

O pai responde, mas sem prestar muita atenção:

– Um livro de Nelson Rodrigues.

– E quem é esse?, perguntou o filho.

– É um escritor... Cronista e dramaturgo. Muito bom. Você deveria ler... Mas só quando adulto!

O filho, no ápice da curiosidade, perguntou novamente:

– Por que só quando adulto? Crianças não leem livros desse escritor?

– Olha meu filho, não é uma leitura muito indicada para crianças de sua idade. Ele aborda questões mais adultas, como, por exemplo, adultério.

– Adul o quê? Pergunta o filho, seguido de uma expressão que demonstrava bem toda sua dúvida e inocência.

– É coisa de adulto, menino. Por que você não vai brincar com o Zequinha? Vá lá, vá.

– Mas papai, qual o nome do livro, para quando eu estiver grande poder ler?

O pai, já com pouca paciência, responde:

– O nome do livro é “A vida como ela é”. Agora vá brincar com os outros meninos e deixe o papai terminar a leitura.

O filho, no entanto, se viu na condição de fazer uma última e derradeira pergunta:

– Papai, e a morte, como ela é?

O pai ficou com cara de tacho por não saber o que responder e, mais uma vez, pediu que o filho se retirasse, dessa vez com mais braveza e pulso firme.

Gilmar Ribeiro (piu!)

06.04.2010, às 15:59
* Revisado por Wagner Belmonte (jornalista e professor universitário).

domingo, 24 de janeiro de 2010

A ÚLTIMA FOLHA

Esta é a última folha do meu caderno. O que devo escrever? O que deve ser depositado nela? Sentimentos? Vontades? Angústias? Simples imaginação? Ainda não tenho certeza, mas não quero que esta folha seja encarada como meu vizinho do 314, o seu Omar, e seja vista unicamente como desperdício. Mas o que devo escrever?

Talvez deva usá-la como rascunho para as minhas tarefas da semana que vem, fazer a lista de compras do supermercado ou escrever um bilhete para minha mãe e afixá-lo na geladeira. Ainda não tenho certeza se devo anotar alguns telefones ou fazer sei lá o quê.

Coço a barba de maneira pensativa, mas parece que as ideias estão extintas de dentro de mim. Penso que o melhor a fazer é pegar o dicionário, procurar algumas palavras que não conheço e escrevê-las, para fixar bem na cabeça. Palavras como “antropônimo” e “mitomania” são-me apresentadas pelo Aurélio. Mas será que é válido marcá-las no papel? Decido tomar um gole d’água.

Sento-me de novo à mesa. Estou cara a cara com a folha de papel e esta parece me desafiar. Começo a morder a tampa da caneta, como sinal de ansiedade. Olho ao redor e nada, nenhuma ideia. Acendo um cigarro e vejo-o queimando na janela, só para passar o tempo. Agora são 04:23.

Levanto-me. Dou voltas e mais voltas ao redor da mesa. Abro e fecho a porta do armário umas três ou quatro vezes. Olho para o teto e para as paredes... Escuto, atenciosamente, o tic-tac do relógio da cozinha. A tensão tomou conta de mim e me impediu de pensar, de organizar as ideias, raciocinar e depois passá-las para o papel.

Está é a minha última folha, a única que restou. Não há mais nenhuma outra. Depois dela terei de ir até a papelaria e comprar outro caderno, e então continuar fazendo o que acho que sei fazer, o que acredito ser bom: escrever.

Só queria dar à minha última folha uma maior utilidade, e esta corresponde com deboche, ri da minha cara, faz parecer que o inútil seja eu, transfere para mim o cargo de “desperdício”.

Minha respiração está eufórica, meu corpo treme de raiva, minhas mãos pingam em suor, e ela está lá, paradinha, olhando para mim, se divertindo à minha custa. Então eu, já sem condições de conceber tais situações, arranco a folha do caderno, a amasso e jogo no lixo. Exclamo, alto o suficiente para acordar a casa toda: “MAS QUE PORRA!”.


Gilmar Ribeiro (piu!)

14.01.2010, às 04:48.
*Revisado por Wagner Belmonte (jornalista e professor universitário).