Sentou-se ao balcão do bar e pediu uma dose de cachaça.
Fazia um calor desgraçado naquela noite, uns trinta e cinco graus – ou mais! – e
não havia dinheiro para nenhuma cerveja. Carregava nos bolsos pouco mais de
três mangos. Tomaria algumas doses de cachaça e a última possivelmente seria
mais generosa, pois assim a solicitaria ao atendente do bar. A banda de hard
rock havia acabado de se apresentar. Pôde ouvir os últimos rifes de qualquer
música que não pôde identificar. Talvez Led Zeppelin... Talvez Rush... Talvez...
Aproximou as vistas do relógio que usava no pulso direito e pôde ver que já era
tarde, não tarde para voltar para casa, ou para voltar ao trabalho, ou para
voltar para qualquer coisa que havia deixado para trás. Era tarde para a vida e...
Era provável que tivesse deixado a própria vida para trás. Provável, também,
que o velho relógio tivesse sido levado pelo vício nesta mesma noite, assim
como alguns resquícios de memória, qualquer integridade e... A banda começava a
desmontar os instrumentos.
Foi ao banheiro. Demorou um pouco mais do que
precisava para urinar. Tateou os bolsos à procura de seu maço de cigarros, mas
não o encontrou. “Que diabo!”. Saiu do sanitário e a viu. Passou
por ele e mexeu nos cabelos, estes ruivos, da cor das mais cálidas chamas que aqueles
cansados olhos já sentiram. Usava roupas pretas, bota estilo cano alto e maquiagem
pesada. Pôde ver o peso daqueles lábios cor de fogo em seus olhos, ardendo,
debatendo-se, incomodando... Aproximou-se e pediu
um cigarro à moça:
– Oi. Me dá um cigarro. – pediu descaradamente e
depois sorriu.
– Como é?!
Coçou a barba em sinal pensativo e pediu mais
uma dose de cachaça.
– DUAS, POR FAVOR! – emendou ao atendente.
Depois à moça – Você toma uma dose de cachaça comigo?
– Cachaça?! – perguntou a moça fingindo estar
admirada com o convite – Não bebo cachaça. Mas aceito uma cerveja.
– E eu aceito um cigarro. – sorriu.
Pegou o cigarro e disse que fumaria lá fora.
– AMIGO, É SÓ UMA DOSE DE CACHAÇA – disse ao
atendente do bar.
Pegou seu copo de aguardente e bebeu tudo de
uma vez e... Quando estava saindo, teve sua passagem impedida pela ruiva.
– Você não vai me esperar?
Saíram os dois juntos e fumaram juntos, e
juntos permaneceram pelo resto da noite. Conversaram sobre qualquer filosofia
vazia de qualquer coisa vazia... Nietzsche, Focault, Lipovetsky... Metafísica,
literatura inglesa, sobre a obra de Nelson Rodrigues... E se beijaram, e se
tocaram... Falaram sobre seus gostos musicais e sobre o que faziam em seu tempo
livre... E falaram sobre sexo, e se beijaram mais... E depois voltaram para o
bar.
– Pode deixar que eu te pago uma cerveja. –
disse a moça a ele.
Simulou
um rápido constrangimento por não ter como pagar cervejas à moça, tão rápido
que ela talvez nem tenha percebido o seu esforço. Sentaram-se em uma das mesas
e desataram uma conversa qualquer sobre sabe-se lá o quê e... “Quem...? O
quê...? Por quê...?”, pensou durante um tempo. E seus pensamentos vagueavam de
fora para dentro, pois tentavam traduzir o que seus olhos viam nitidamente ali,
ao alcance de suas vistas, mas não podiam compreender, e isso o intrigava; isso
de ser incompreendido definitivamente o intrigava, e sua busca por algum
sentido parecia, à essa altura, uma espécie de obsessão. Qualquer música do
Deep Purple tocava enquanto ele a observava novamente, dos pés à cabeça; e
tentou decifrá-la, tentou traduzir o que seus olhos viam. Tateou os bolsos à
procura de seus óculos e... Inútil, eles não estavam ali; e mesmo se estivessem,
seria igualmente inútil; na verdade, nem todas as palavras existentes em
qualquer vocabulário poderiam expressar com precisão isso; e isso, na verdade,
não é o tipo de coisa que se deve expressar, mesmo porque não existem palavras
que expressem bem o que é isso. E isso o intrigava inteiramente, como se fosse
uma mentira muitíssimo bem contada, mas que no fundo sabemos a verdade.
– Toma mais uma cerveja? – perguntou a moça.
Fez que sim com a cabeça sem nem ao menos
atentar para o que lhe fora perguntado.
Tomou mais uma dose de cachaça, se levantou e... Estava excitado! Tentou
cobrir o volume na calça com as mãos, o que tomou toda a atenção para suas
mãos, que cobriam o volume na calça. Pediu desculpas e... O atendente do bar
trouxe a outra cerveja e mais dois copos tulipa gelados. Tinha um olhar
constrangido, face corada e gestos atrapalhados, não sabia mais onde colocar as
mãos, se cobria o volume da calça, ou se as levava à cabeça, pedindo que se
desmaterializasse ali mesmo. Depois pediu licença à moça e foi ao banheiro. Ainda
estava excitado. “E isso é hora de ficar de pau duro?!”, pensou. Sentou-se no vaso e...
Passado quinze minutos, sua repentina excitação havia cessado. Voltou ao bar.
– Espero que ainda tenha mais! – disse a moça enquanto
tomava sua cerveja.
– Mais o quê?
A moça sorriu maliciosamente. Decerto pensou
que a inesperada excitação se deu porque... De fato era muito formosa e
elegante. Tinha olhos verdes, boca sedutora, seios imensamente fartos e...
– MAIS UMA CACHAÇA, POR FAVOR! – disse ele ao
atendente.
Depois de beber a última dose de aguardente –
havia decidido isso quando foi ao banheiro e contou suas últimas moedas –, ele
a tomou pelos braços e a beijou desvairadamente. Após o beijo se desculpou pela
boca recém visitada pelo gosto amargo da cachaça.
– Não faz mal. – disse a moça com demasiada
naturalidade – Pra ser sincera, eu gostei de você. Tava até pensando...
“War Pigs” foi bruscamente reproduzida no
último volume, enquanto alguns roqueiros gritavam e simulavam tocar guitarra
próximo ao palco. Eles trocaram alguns olhares repletos de cumplicidade e...
Logo após toda a agitação que fizeram ao som de Black Sabbath, eles saíram e...
Chegaram ao apartamento dela, que ficava a algumas quadras do tal bar. Ela
serviu algumas cervejas e disse para ele ficar à vontade; ele entendeu o ficar à vontade e tirou a camisa. Conversaram um pouco, depois se beijaram
e depois tomaram uma rápida ducha. Ele se deitou no sofá enquanto ela exibia
suas belas curvas. Aproximaram-se e se beijaram fervorosamente, como dois
loucos incinerados que se amam e queimam de dentro para fora e... Aquilo que o intrigava
havia sido decifrado. Afastou a moça com as mãos espalmadas e quase gritou
quando ela se negou a afastar. Nada mais poderia ser feito, tudo estava
completamente pela metade, redondamente equivocado. Vestiu suas roupas e pediu
desculpas à moça, que nem o olhou na cara, e... Antes de se despedir pediu um
cigarro e algum dinheiro para o transporte. Recebeu um maço com oito cigarros,
uma caixa de fósforos e qualquer quantia que guardou nos bolsos. Saiu.
Andava em círculos pelas ruas do centro da
cidade; já não fazia mais calor, e se fazia, não seria ele capaz de sentir. Na
verdade fazia frio, e o frio que fazia não havia sido previsto em nenhum
telejornal no dia anterior, ou durante a semana, ou em milhões de anos! Era um
frio diferente, estranho e... Havia uma escassez sem tamanho de qualquer coisa
que não sabia explicar bem o que era; sabia-se que faltava, mas como reclamar
por algo que nem sabemos o que é? Isso o intrigava. “Mas que porra!”. Andava em
círculos pelas ruas do centro como quem procura por aquilo que não se pode
encontrar pelas ruas do centro. Entrou num bar qualquer, sentou-se ao balcão e
pediu uma dose de cachaça.
Gilmar Ribeiro (piu!)
10/09/2012, às 02h27
Não
revisado