segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Literalmente gatuno



                 – Prendam-no! – gritou a voz de dentro da biblioteca pública.
            Ele saiu às pressas, ao mesmo que fingia que não era com ele; parou um pouco, levantou a camisa para que vissem que não portava nada – os livros estavam dentro de suas cuecas –, e em seguida desatinou a andar mais rápido. Foi interceptado a algumas quadras por um carro vermelho. Teve uma cínica expressão de “Que foi?!”. O homem abaixou o vidro do carro e disse:
            – O senhor faça a gentileza de devolver os livros que roubou!       
– Livros?
Ele tinha muitos talentos e, sem sombra de dúvidas, o cinismo era um dos mais notáveis; levantou novamente a camisa e disse, fingindo admiração:
– Não roubei nenhum livro!
– Eu escutei a sirene da biblioteca. Sai correndo e sei que foi você, seu trombadinha!
– Certamente a tal sirene está com defeito, oras! E eu gostaria que o senhor me tratasse com mais respeito.
– Devolva-me os livros, seu moleque!
– Não devolvo nada! – vacilou – Digo, não devolvo porque não roubei nada. Não sou ladrão!
– Isso é o que veremos. – fez sinal para um carro de polícia que passava.
– Boa tarde, senhor policial. Esse moleque acabou de roubar um livro. – e apontou para o menino.
– Não roubei nada, veja. – e mais uma vez levantou a camisa para que verificassem que, de fato, não havia roubado nada – Acontece que esse senhor me pegou para Cristo e está me difamando.
– Cínico! – disse o homem em tom agressivo.
– O senhor trabalha na biblioteca? – perguntou o policial.
– Trabalho sim, senhor.
– Então tá, conte-me o que houve, calmamente. – o policial ainda estava no carro.
– Acontece que esse moleque...
– Mais respeito, por favor!
– É só o que me faltava: ter respeito por um ladrãozinho! – disse ironicamente o homem da biblioteca.
– Não sou ladrão! – disse novamente o menino em seu próprio favor – Acontece que esse senhor...esse senhor... – fungou e fingiu pranto – Meu Deus! – e seu cinismo ia ao ápice.
– Então, o que houve? – tornou a perguntar o policial.
– O que houve foi que esse tipo aí, ó – e apontou para o menino – acabou de roubar um livro na biblioteca.
– Eu não roubei nada. Eu juro. – e seu pranto era digno de um Globo de Ouro.
– Olha, você pode ir embora, meu filho. – disse o policial ao menino.
– O QUÊ?! NÃO ME DIGA QUE VAIS LIBERAR ESSE MARGINAL, ESSE DELINQUENTE DE UMA FIGA?! NÃO PODE SER!
– O senhor não tem nenhuma prova de que este menino furtou alguma coisa. E a polícia tem mais o que fazer, meu senhor.
– Mas a sirene...
– A sirene deve estar com algum defeito, oras. – disse o menino com leve tom de ironia enquanto secava as falsas lágrimas.
– Com defeito deve estar a...
– Mais respeito, por favor. – pediu calmamente o militar.
– RESPEITO É UMA PINOIA!
– Se o senhor não se controlar, terei de levá-lo a delegacia por desacato*.
– Mas o culpado é ele! – e apontou para o menino – Ele que roubou um livro.
– O correto seria “furtou”, caso eu tivesse furtado alguma coisa. – corrigiu o menino ao mesmo que deixou escapar um leve sorriso irônico.
– Mas... Mas...
E o homem não encontrou palavra alguma que lhe  servisse de argumento; se calou e concordou em libertar o lisíssimo gatuno literário; este se viu livre de responder por furto de romance histórico duplamente qualificado e, também, extravio de obra literária realista. A pena prevista para esses hediondos crimes é de três a seis meses de serviço voluntário em alguma escola pública.

[*... Faltar com o respeito para com um funcionário público no exercício da função ou em razão dela. Isto é, incorre nesse crime aquele que ofende o agente público em serviço, bem como aquele que ofende alguém em razão de função pública que este exerce. A pena prevista é de detenção, de 6 meses a 2 anos, ou multa, segundo o artigo 331 do Código Penal...]


Gilmar Ribeiro (piu!)
19/11/2012, às 16h47
Não revisado

Nenhum comentário:

Postar um comentário